terça-feira, 9 de dezembro de 2008

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segunda-feira, 5 de novembro de 2007

1962, há pois 45 anos


Em 1962, aos 5 de Novembro, uma terça-feira, o pai Manuel tinha ido trabalhar como todos os outros dias, para a tipografia da Rua do Noronha, em Lisboa, ali à Rua da Escola Politécnica.

Já a maravilhosa mãe Maria do Carmo exasperava com dores e sinais.

O irmão João esse devia reflectir ansiosamente sobre a mecânica dos nascimentos. Até acredito que, se pudesse, teria intervindo mais cedo ajudando à engenharia do processo.

Mas não demorou muito tempo a que tudo fosse imparável e lá terá desatado o João a correr pelas ruas e matagais fora, à procura da parteira.

Devia marcar o relógio aí umas 9 horas e pouco da manhã, e o pai Manuel já trabalharia havia mais de 1 hora.

Viviam então aqueles três, e depois 4, ainda mais 3 anos, 1 mês e 3 dias, depois desse dia, na Charneca do Lumiar, orgulhosa freguesia lisboeta, embora bem na ponta da cidade. Tão na ponta que até acredito que nem se orgulhava muito dela a cidade.

Sou por isso um lisboeta periférico, nascido em bairro a que a Lisboa média, rica, podendo, bem chutaria para pelo menos Sacavém.

Eram 10:15 quando chegou então mais um, dizem as testemunhas presentes.

Famosa foi a tirada do pai Manuel, quando chegou, à noite: que escuro é este miúdo.

Mas há explicação. O João fora dos mais belos filhos que se pode ter, a pele, as formas, o cabelo, tudo como se tratasse de criança de cinema.

Já a minha tez era escura, creio que saí logo de beicinho e o cabelo era verdadeiramente russo. Tudo afinal sinais de irreverência, prenunciadores da natureza radical e heterodoxa que mais tarde sempre me caracterizaria.

45 anos depois aquela criança não tem cabelo (russo ou outro), a pele é insípida e da adivinhada radicalidade ficaram mais destacadamente umas cenas de sexo em público, perto dos 20 anos e nas imediações da erudita Gulbenkian, matéria hoje mais de vergonha que de orgulho.

E embora me sinta muitas vezes feliz, a verdade é que às vezes me sinto muito infeliz. Parece que é da merda de signo que me calhou, como diria a minha excelente comparsa de public sex, há vinte e tal anos, a excelente Deolinda.

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

a Kimba


A Kimba viveu comigo 11 anos, desde os seus 15 dias de vida. Chegou ao meu 3º andar da Estrela numa caixa de cartão e saiu de casa sem que a conseguisse olhar uma última vez. Era a Kimba logo doce e bela, aos 8 de Fevereiro de 1980, quando primeiro nos vimos. Ladrava baixinho, quase piava, ao sair de dentro da caixa. Tinha fome. Dei-lhe leite. Pequenina que era, pu-la em cima da cama, aí uns 60 centímetros acima do chão. Tinha de cair, caiu de alto. Chorou, ou seja ganiu fininho, como de fino se queixam todos os infantis. Mas foi um dia fantástico. Começavam 11 anos de alegrias e cumplicidades. Fui sempre o seu principal municiador de lazer, o parceiro de todos os passeios, o prestador de quase todos os cuidados de saúde. Fui também o salvador de alguns apertos, pois a Kimba morreu virgem e tinha feitio às vezes difícil, sem nunca suportar que cão algum lhe pusesse as patas em cima. A Kimba era curiosa, incrivelmente metediça, mesmo agressiva, por vezes. Não queria sexo, mas era raro o macho que passava sem uma inspecção à virilidade. É verdade que a sua qualidade de meio pastor alemão (o pai não era pastor alemão) acabava quase sempre por impor respeito. Do género “mostra lá o que tens mas põe-te calmo”. Mas sucede que um certo dia, ao chegarmos ao jardim da Estrela e ao fazer o seu habitual programa de reconhecimento, alívio e inspecção geral, a Kimba vislumbra um macho e, como de seu uso, logo desata a correr para ele. Só que este macho era diferente de tantos outros. Teria 3 vezes o tamanho dela. Parecia um burro. Mas a Kimba não hesitou e foi decididamente ao que queria, determinada a conhecer o lugar sensível daquele quase ciclope canino. Como se adivinha, mediante tal inaudita demonstração de interesse, o cavalheiro prepara a resposta e procura posicionar-se. Em coerência com o seu perfil psicológico e a sua moral tão particular, a Kimba responde como sempre e manda-se de dentes ao burro. Teria sempre poucas hipóteses. Ora, eu sempre tive medo de cães (a Kimba era naturalmente, para mim, mais que cão). Mas naquele fim de tarde tinha de salvar a irmã espiritual, minha companheira de anos, aquela louca e casta cadela que tantos bons e maus momentos tinha partilhado comigo, e eu com ela. Sem outro remédio, corri direito ao burro, o dono estúpido e estático, provavelmente divertido, e eis-me na indeclinável imposição de arrancar a Kimba daquela cena de terror, com o maior cão que jamais vira de tão perto (sensação de descomunalidade provavelmente induzida pelo medo). Agarrei nos seus 20 quilos a braços e só então ela parece ter-se inteirado de que aquele não era macho ao seu alcance. Nunca mais vi o burro e a Kimba e eu continuámos felizes juntos. Até uma certa manhã de fins de Janeiro de 1991, quando o silêncio se substituiu à habitual alegria dos seus “bons dias”, em forma de pequenas lambidelas. Falhou o coração. Tocava no gira-discos Angelo Badalamenti, a banda sonora de “Twin Peaks”. Nunca mais consegui ouvir Badalamenti, e de David Lynch vejo sempre com dificuldade os filmes. Acho-os aos dois, depressivos e soturnos como são, em parte culpados pelo que se passou, creio que aos 31 de Janeiro de 1991.

uma pequena história

Há muitos anos eu fui pobre, mesmo pobre. Passei Invernos sem “Kispos”, vestido apenas com casacos de malha feitos pela minha mãe, fizesse chuva ou fizesse frio, às vezes muito frio. Fui motivo de chacota no liceu, pela crueldade que só os miúdos conseguem ter, e alvo de enxovalhantes inquirições em público pelos professores, os mais misericordiosos e pios. Aconteceu isto depois da morte do meu pai, tinha eu uns 12 anos e era o meu irmão militar, por sinal com problemas - suspensão e até detenção em quartel - por estar envolvido politicamente. Para além da falta do “Kispo”, faltavam-me outras coisas, acima de tudo uma bicicleta. Mas eu corria que me fartava. No Liceu Pedro Nunes, escola lisboeta de ricos, ganhava corridas sobre corridas de 60 metros (o tamanho da pista do liceu) e na minha rua só o Zé Manel da “peixeira” conseguia competir comigo. Percebi mais tarde que miúdo sem bicicleta corre mais depressa. Um dia juntaram-se no jardim da Estrela uns 10 miúdos da minha zona com bicicletas, alguns amigos, outros nada amigos, para fazerem corridas em redor do maior espaço relvado, uma extraordinária pista de cimento - que ainda hoje existe. Eu não seria o único sem bicicleta, mas doía-me tanto como se fosse.Tiveram lugar as eliminatórias e apurou-se um vencedor, o Paulo Jorge. Foi o meu momento de glória. Desafiei-o para uma corrida, eu e as minhas pernas e ele e a sua fantástica bicicleta de roda 24. Creio que se riu. Quase todos se riram de mim. A pista teria uns 200 metros. Era uma só volta, partindo-se lado a lado. Ganhei. Corri que nem um louco, mas feliz e determinado, porque sabia que tinha de ganhar e assim, quem sabe, vingar toda a dor de ter sempre menos que todos os outros. Terminada a volta, viro-me para trás para celebrar e contemplar a cara daqueles meus amigos mais ricos. O Paulo Jorge não conseguiu suportar a minha vitória e atropelou-me com violência. Caímos os dois e penso que parti a cabeça. Não recordo muitas outras vitórias com aquele sabor, passados estes 30 anos. Mais do que já antes sucedia, nunca depois me deixaram conduzir as bicicletas deles e o Paulo Jorge deixou de me falar, pelos menos umas boas semanas. Mais tarde as coisas mudaram e também eu passei a ter um “Kispo”. Já a bicicleta, só aos 35 anos comprei uma.

um beijo por dez escudos

Entre os 10 e os 11 anos, o meu tamanho era o de todos os miúdos, pequeno, ainda desesperando pelo impulso vertical que me tornasse mais próximo dos meus ídolos, acima de todos do meu irmão, 8 anos adiante e um namoradeiro dos diabos. Já a Almerinda teria uns 13 ou 14, era altíssima, formato quase completo de mulher, os cabelos lisos, castanhos, longos, os olhos também castanhos, sabedores, característicos de uma mulher da Rua Maria Pia. Acontecia esta história na Escola (então) Preparatória Manuel da Maia, no bairro de Campo de Ourique, bem próximo do Casal Ventoso. Garanto-vos que não havia outra miúda sequer perto da imponência da Almerinda, como também não havia outro tipo por perto do tamanho do seu namorado "formal", o Ismael, um matulão de alguns 16 anos, que todos os dias saía da sua Escola (então) Industrial Machado de Castro e fazia não longe de 3 quilómetros a pé para ir buscar a Almerinda. Sempre acolitada pela mulher mais feia da escola, a indescritível Clara, a "minha" Almerinda fazia-se pagar por favores, o mais famoso deles um beijo lábios com lábios. O preço tabelado eram dois sorvetes, um para cada uma. Mas não era fácil o negócio e poucos se arriscavam a que o Ismael chegasse e com dois estalos acabasse com a graça da ousadia. Mas eu e o Miguel sempre tínhamos sido bons cúmplices, embora rivais. Eu fui sempre o número 2 e ele o número 3 nas classificações do ensino primário (o Nuno era o 1, atinadíssimo, o bibe sempre impecável, olhar sempre em frente para o professor Janeiro. Um pobre infeliz), numa época em que os melhores se sentavam à frente e os piores ficavam esquecidos ao fundo da sala. Vivíamos, eu e o Miguel, a uns 500 metros um do outro, eu visita de casa dele vezes sem conta, ele menos da minha, porque em minha casa nada havia que lhe interessasse, os brinquedos sempre poucos e pobres. Mas jogávamos mesmo bem um com o outro nestas coisas. E tínhamos tudo temporizado. O esquema era assim: nós e o Ismael saindo ao mesmo tempo, cada qual da sua escola, às 4 da tarde, o carro dos sorvetes estando á porta todos os dias, os 3 quilómetros do Ismael duravam-lhe no mínimo uns 15 minutos, o que nos deixava uns 5 a 7 minutos para tratar do caso. Logística preventiva adicional, quando o dinheiro era meu, ia o Miguel para a esquina da Rua Almeida e Sousa, a uns 50 metros, e gritaria se o Ismael se chegasse ao horizonte. Se os 10 escudos eram do Miguel lá ia eu. Ao Miguel, filho de engenheiro, coube sempre beijar mais vezes. Mas eu não me posso queixar. Foram os meus primeiros e tinha a pobre da Almerinda de se curvar um bom bocado. Ainda lhes tenho o sabor na memória. E, evidentemente, nunca o Ismael nos apanhou e à Clara da Maria Pia jamais lhe toquei os lábios. O Miguel, esse, beijou-a vezes sem conta também. Um desperdício. Revi há poucos anos a Clara, tão feia como então. Olhou para mim e parece-me que se lembrou que nunca me tinha pago convenientemente todos os gelados que lhe ofereci, com moedas tão arduamente resgatadas aos meus pais. Passei adiante e confirmei o acerto da minha decisão de vinte e tal anos antes. Mas nunca mais vi a Almerinda. Se a visse agora não sei se resistiria a convidá-la para irmos comer um gelado. Pagava eu, é claro.